Certo dia, após o assassinato da menina Ágatha, vi o comentário de um conhecido que dizia o seguinte: “milhares de policiais morrem nas mãos de bandido e não vejo essa comoção toda”.
É triste ver que nossa sociedade não tem consciência de classe, consciência racial e muito menos conhece a própria história. Mais do que isso, compaixão e empatia por quem carrega mais estigmas sociais mesmo sendo uma criança. Sabe por que? Porque vemos e choramos morte de policiais que são assassinados em confronto no exercício de sua profissão. Mas choramos mais ainda morte de pessoas como a Ágatha. Porque Ágatha não morreu no exercício de sua profissão e muito menos em confronto. Aquilo não era um confronto! Ágatha não estava ameaçando a polícia. Ágatha era uma criança de 8 anos que ia para a escola buscar um futuro melhor. Uma criança assassinada pela polícia! Aqueles que deveriam protegê-la. Ágatha não era bandida. Ágatha era uma criança que nada fazia contra a polícia! O despreparo e o racismo institucional que consome nossos aparatos estatais mataram Ágatha.
Agora, tirando as emoções, vamos aos dados para explicar essa afirmação…
Porque nos comovemos cada vez que um jovem negro morre assassinado pela polícia?
Em um universo de 65.602 homicídios praticados em 2017, no mínimo 5.159 decorreram de intervenções policiais, segundo os dados oficiais agrupados pelo Atlas da Violência 2019 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo 12º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Em 2017, mais de 75,5% das vítimas de homicídio por policiais eram jovens e negros. Entre 2007 e 2017, a taxa de pessoas negras mortas subiu 33%. A mortalidade de não negros subiu apenas 3,3%.
Se você ainda não se convenceu do recorte racial que a violência policial tem contra pessoas negras e periféricas, analise outro aspecto… porque a abordagem policial é diferente entre pessoas brancas e negras? Você pessoa branca, já foi seguida por um segurança numa loja por ser considerado suspeito? Pois bem, uma pessoa negra, por mais bem vestida que esteja, é considerada suspeita pela cor de sua pele.
Vamos a relatos pontuais, mas recorrente quando dialogamos com grupos de pessoas negras…
Certa vez um rapaz negro, muito bem vestido, estava dentro da Lojas Americanas quando de repente ouve a voz do microfone solicitando um segurança no corredor 9, pois havia uma pessoa suspeita. Quando ele olha para o lado, seguranças estão no corredor que ele estava. Ele não estava com boné aba reta, nem com aquelas roupas folgadas que as pessoas julgam suspeitas de serem “roupas de bandido”. Mesmo assim ele foi considerado suspeito sabe por que? Por causa da cor da pele. Sim! Uma pessoa branca vestida da mesma forma que ele certamente não seria considerada suspeita.
Outro relato, agora bem particular porque ocorreu comigo, mulher negra, é muito parecido com o que aconteceu com esse rapaz. Não fui seguida uma vez numa loja, foram diversas. E independe da roupa que estava vestida. Seja com roupas simples ou com roupas sociais já fui seguida por seguranças de lojas algumas vezes por ter estereótipo suspeito. E que estereótipo é esse? Não, não é a roupa. É a cor da pele!
Muitas vezes, quando a polícia aborda um jovem negro ele não pergunta nem o nome. Já chega na voadora. Jargões a parte, isso quer dizer que a abordagem policial com pessoas negras, em geral é violenta. Policiais são ensinados a distinguir pessoas suspeitas e o estereótipo são sempre os mesmos: homem e negro.
É comum que, em uma abordagem policial, homens brancos tenham mais chance de serem liberados, enquanto negros são revistados. É comum que a abordagem em periferias sejam mais violentas do que em áreas mais nobres. É comum que, quando um policial vê um homem negro num carro caro, pare esse carro e faça uma revista, quando o mesmo não ocorre com homens brancos. Sabe o que é isso? Racismo institucional. Tratar a cor negra como suspeita.
Quando falamos: parem de nos matar. Não é porque queremos que matem mais brancos. É porque, além de nos marginalizar, estão nos assassinando simplesmente por existir. Ágatha não estava em confronto policial. Ágatha era apenas uma criança negra indo a escola e foi assassinada por polícias porque é negra sim! Se houvesse um confronto policial em uma área nobre, a abordagem seria diferente porque sempre é. Por isso que este caso causa tanta comoção. Era apenas uma criança vítima do racismo do Estado. Morta pelo Estado. Causa da morte: RACISMO.
Como mudar
O primeiro passo é implodir o sistema. Não, não falo pra jogar uma bomba e matar todo mundo. Mas mudar radicalmente o sistema. Ele foi construído sob uma perspectiva racial onde há supremacia branca e acesso a estruturas de poder exclusivamente branca. Após a escravidão, negros foram marginalizados e encarcerados. E o encarceramento negro não foi apenas porque o cara negro tava roubando. Mas porque ele existia. Mas enfim, em outro artigo explico sobre o que é o encarceramento negro.
Nessa perspectiva de Estado estruturado na supremacia branca e que exclui o povo negro, as regras foram moldadas privilegiando um povo: homem e branco. No contra ponto, o negro foi ficando à margem da sociedade, empobrecendo e excluído de espaços de poder. Nessa construção, o branco privilegiado moldou o Estado como quis e estigmatizando seu ex-escravizado como o lado negativo do Brasil. Assim nasceu o aparato estatal brasileiro excludente e promoveu-se o racismo institucional que violenta a pessoa negra todos os dias.
Para mudar essa estrutura racista, é preciso educação. Mas uma educação de dentro pra fora. Que ensine primeiro os agentes do Estado a não serem racistas, a entender as desigualdades raciais e atuar conforme o princípio da isonomia, tratando iguais como iguais e desiguais como desiguais. Assim se promove políticas afirmativas dentro do Estado para mudar a própria visão. A partir dessa mudança interna, muda-se a externa. Colocando para fora o aprendizado antirracista. O Estado se apropria das políticas de igualdade racial que lhes foram aplicadas e passa para a sociedade.
É utópico? Talvez, mas a forma eficaz de se atingir o objetivo. Não tem como um racista aplicar políticas antirracistas. É contraditório. É importante educar o agressor e o Estado, neste caso, é o maior agressor.