
Em meio à tanta notícia ruim resolvi propagar o amor…
No entanto, venho escrever sobre amor e caridade, o que é algo lindo que vemos se intensificar nesse período difícil que vivemos na pandemia do Covid19, mas, ao mesmo tempo, relato a tristeza de ver que aqueles que mais estão necessitando de assistência tem cor: preta. Resquício do racismo estrutural da nossa sociedade que outrora foi escravocrata, aboliu a escravidão, mas não deixou de ser racista e não deu condições sociais para a raça negra se reestruturar no pós-escravidão. E por isso, hoje são maioria nos subempregos, nas periferias, nas ruas, em vulnerabilidade social.
Em tempos de Covid19, o amor se propaga mais intensamente
Nesse período tão difícil que vivemos também estamos vendo a solidariedade aumentando. O sentimento de amor ao próximo se intensificando.
São muitos os coletivos criados nessa pandemia para ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade social e outros que já faziam trabalhos sociais estão ainda mais engajados e atuantes. Nesses períodos vemos que a solidariedade faz parte do brasileiro. Existe sempre uma forma de ajudar e é nisso que nos apegamos. Pouco ou muito, uma andorinha faz verão sim. Para alguém a sua ajuda fez a diferença e isso tem uma importância enorme na vida daquela pessoa. E é por isso que estou aqui para exaltar essas ações e homenagear esses anônimos do bem. O que vocês fazem é muito importante e não pode parar.
São católicos, espíritas, evangélicos, umbandistas, candomblecistas, ateus… não importa a religião ou se não tem uma, mas estão sempre dispostos a ajudar com alegria e amor no coração. Isso faz do alimento ainda mais gostoso e a ação ainda mais importante.
Um coletivo criado para o período da pandemia faz marmitas para entregar a pessoas em situação de rua. Começou pequeno, com a Viviane de Melo e sua mãe entregando marmitas no sudoeste. Logo depois, o Instituto do Carinho, que acolhe crianças em situação de risco, passou a ajudá-las e os pedidos de ajuda só cresceram. Foi então que o “Marmitas com Amor” ampliou sua atuação e passou a entregar marmitas em todo o Distrito Federal. Já são mais de 5 mil marmitas entregues. E os relatos emocionantes. Enquanto lia as entrevistas para escrever este artigo, lágrimas desciam em meu rosto. Um relato em especial me emocionou… talvez pelo fato de ser mãe e negra… vou compartilhar aqui com vocês:
“Um dia encontrei uma mãe preta com seus dois filhos, uma de 05 anos e outro com 10 anos, aproximadamente, vendendo máscaras num sol quente escaldante. Buzinei e os chamei. Eles acharam que eu ia comprar máscaras, mas aí ofereci a comida. Na mesma hora o menino mais velho me disse: “Tia, a senhora salvou o meu dia! Estou com muita fome, não vendemos nada…” e a mãe me disse que não tinham conseguido vender nada, e não teriam o que comer durante o dia … só a noite ao chegar em casa e olhe lá … entregamos todas as marmitas restantes para ela levar para casa também e jantar. Aquilo me marcou profundamente. Eu precisei me segurar para não chorar na frente deles”.
Também me marcou profundamente, Viviane…
Outro fato importante de ressaltar e que também marcou é o que relata Valdemar da Silva, da Coletivação, “nos contam suas histórias e acreditem, eles as têm.” Sabe por que essa frase me chocou? Porque a sociedade invisibiliza pessoas em situação de rua. Você passa por elas e não as vê. Não vê uma pessoa, não se dá conta que tem uma história. Juliana Patrícia, que atua em diversos coletivos e também atua por conta própria com pessoas em situação de rua também relata isso, “aquelas pessoas, muitas vezes, já tinham esquecido o que era ser um ser humano, pois a sociedade excluíam tanto que eles já estavam além da margem da sociedade”.
É por isso que o trabalho da Coletivação se faz tão importante. Porque eles levam comida para o corpo físico e para a alma. Com o projeto chamado “Missão de Rua”, a igreja Coletivação leva lanche para pessoas em situação de rua na Ceilândia toda sexta-feira. Além desse lanche, eles conversam e ouvem essas pessoas. O Missão de Rua faz as pessoas em situação de rua se sentirem pessoas, alguém com história e importância. Isso também é uma forma de resgate. Por mais que eles permaneçam na rua, isso os resgata como pessoas e faz a diferença na vida deles.
Nesse período de pandemia, a Coletivação ampliou o projeto e passou a entregar refeições de segunda a sábado.
Falando em inclusão, ressalto um fato meu com esse coletivo. Coletivação é uma igreja evangélica liderada por Otávio Damichel. Uma igreja inclusiva que realiza seus cultos no espaço do Jovem de Expressão (Ceilândia) todo domingo (fora do período de pandemia) às 10h com café da manhã. A ideia do Dam, como é conhecido, é que o café da manhã esteja disponível a quem chegar lá, participando do culto ou não. A igreja é inclusiva porque aceita a todas e todos, independente de classe social, orientação sexual ou religião. Digo isso porque eu, uma mulher umbandista, já fui convidada por este coletivo para falar sobre igualdade de gênero num de seus cultos. E foi ouvida… e bem ouvida por todos, mulheres e homens. São destes anônimos do bem que nossa sociedade precisa.
Uma outra anônima que atua intensamente principalmente com pessoas em situação de rua é uma amiga por quem tenho muita admiração justamente pelo trabalho que faz, Juliana Patrícia. Ela atua em vários coletivos, mas não precisa estar em um para atuar. Quando vê alguém em necessidade, ela vai e ajuda. Não mede esforços.
“Comecei a atuar no auxílio à população de rua em 2015 em paralelo ao início dos estudos sobre a espiritualidade. A máxima de que a caridade é o amor em ação me fez olhar com olhos mais amorosos para essas pessoas que vivem diversas dificuldades nas ruas… me lembro bem, o frio do lado de fora de casa e eu quentinha comecei a pensar como estariam as pessoas que estavam nas ruas. Logo comecei articular campanha do agasalho e cobertores entre amigos e entregar ao ver alguém com frio na rua. No mesmo ano, tomei conhecimento de um projeto no Setor Comercial Sul e passei a ajudar a cozinhar, levar alimento caseiro e quentinho, para as pessoas em situação de rua daquele local. Aos poucos fui conhecendo mais a história de todos por ali e entendendo muitos pré-conceitos que eu tinha, pois o principal objetivo era ouvir e acolher aquelas pessoas”, relata Juliana.
Observe que o trabalho desses anônimos ajuda eles também. Ao conhecer de perto as pessoas da rua, você quebra preconceitos e passa a ver a vida de outra forma. A caridade ajuda o próximo, mas também engrandece quem a exerce.
O Templo Espiritual Rosa Branca, centro de umbanda situado na Samambaia, paralisou suas atividades no período da pandemia para proteger os trabalhadores e consulente, mas intensificou suas ações sociais. No dia 13 de maio, dia de pretos-velhos, quando os terreiros de umbanda costumam fazer a feijoada dos Pretos-Velhos em suas casas, o Templo Rosa Branca fez diferente. Já que não podia juntar seus trabalhadores para uma homenagem aos pretos-velhos, fizeram aquilo que a umbanda mais prega: a caridade. Como relata mãe Cícera,
“A fé nos deu força para preencher com a sabedoria dos nossos Pretos-Velhos a possibilidade de fazer uma gira ambulante. Uma gira ao som das panelas no lugar do atabaque, com irmãos cozinhando no lugar dos médiuns atendendo. No lugar do cachimbo, da alfazema, do copo de água e da vela branca, recebemos feijão, arroz e embalagens para as marmitas que seriam distribuídas para os moradores de rua. Tivemos a honra de fazer a feijoada dos nossos Pretos-Velhos e levar o axé da gira para a rua, onde distribuímos 130 marmitas feitas com dedicação, com energia e humildade”.
E todos esses anônimos estão unidos pelo mesmo objetivo: ajudar o próximo. Nesse período de crise essa ajuda se tornou ainda mais intensa e esses anônimos têm papel importantíssimo na sociedade ao ajudar aqueles que mais necessitam quando o Estado se omite. São anônimos do bem, com importante papel na sociedade e que seguem fazendo o bem desprovidos de preconceitos e com amor.
A todos estes, presto minhas homenagens e gratidão por estarem ajudando irmãos em situação difícil. Principalmente irmãos de raça, pois todos relatam que maior parte das pessoas em situação de rua e vulnerabilidade social são negras. Nossa história escravocrata deixou marcas tristes.
Os dados
O Brasil não possui dados oficiais sobre a população em situação de rua. No entanto, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a partir dos números de 1.924 cidades, por meio do Censo do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas), estimou que existiam 101.845 mil pessoas em situação de rua no Brasil em 2018.
Também não há um levantamento nacional mostrando a disparidade racial das pessoas em situação de rua. Em São Paulo, segundo levantamento da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), em 2018, 70% das pessoas em situação de rua eram negras e 27% brancas. As demais pertencem a outros grupos raciais ou não foram identificados. Em Vitória, no Espírito Santo, a secretaria de Ação Social fez um levantamento racial em 2018 e mostrou que 78% das pessoas em situação de rua são pretas ou pardas. Em Belo Horizonte (MG) a cada 10 pessoas de rua, 8 são negras. Na Capital Federal do Brasil não há levantamento.
Todas as pessoas que atuam junto àquelas em situação de rua afirmam que a maioria é negra.