“Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar elocuções‑chave, isto é, a tradição oral. A tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para outra.
Quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas. Isso, pelo menos, é o que prevalece na maioria das civilizações africanas. Os Dogon sem dúvida expressaram esse nominalismo da forma mais evidente; nos rituais constatamos em toda parte que o nome é a coisa, e que “dizer” é “fazer”.”
(História Geral da África volume 1. Pg: 139)
As sociedades africanas são, historicamente, sociedades orais. Sua historiografia, literatura, religiosidade é passada de geração a geração por meio da tradição oral.
No entanto, como nossa sociedade é pautada no eurocentrismo, a cultura é da escrita e, sem um olhar antropológico, acaba por se colocar sociedades com tradição oral como sociedades sem cultura e sem registros. Contudo, atualmente esse pensamento vem mudando e renovando as metodologias e os resgates históricos. A própria enciclopédia de História Geral da África, da Unesco, mostra, no primeiro volume, a necessidade de se utilizar a transversalidade de disciplinas para contar a história da África. Utilizaram historiadores, geógrafos, antropólogos, geólogos e arqueólogos. O livro possui um capítulo dedicado a explicar a tradição oral do continente africano, no entanto, ainda que buscando entender a sociedade oral, tenta-se enquadrar sua historiografia e literatura em categorias ocidentais.
É importante entender que a África, como sociedades mais antigas que são, possuem cultura, literatura e historiografia próprias sendo inviável classificá-las nos vieses ocidentais eurocentrados. A África é oral. Seus historiadores, os griots, aprendem os fatos anteriores com seus mais velhos, vivenciam outros para passar o que ouviram e o que viveram para frente e assim perpetuar sua história. O mesmo acontece com os griots da literatura que perpetuam seus contos e mitologias que tem um poder próprio de educação para suas crianças.
As sociedades africanas possuem toda sua estrutura e cultura pautadas na oralidade e por isso se valoriza tanto os mais velhos que ensinam e os mais novos que aprendem. Nas religiões de matrizes africanas saúdam-se os mais velhos e os mais novos como reverência a quem tem a ensinar e a quem tem a perpetuar esses ensinamentos “a benção aos meus mais velhos, a benção aos meus mais novos”. E não é porque a sociedade é oral que é atrasada. No olhar de quem ela é atrasada? Para as sociedades ocidentais? No olhar de um africano as sociedades ocidentais podem ser atrasadas em relação a eles. Isso porque eles valorizam os anciãos, enquanto nós os deixamos à margem da sociedade por os considerar inúteis já que não tem vida laboral ativa.
“Entre as nações modernas, onde a escrita tem precedência sobre a oralidade, onde o livro constitui o principal veículo da herança cultural, durante muito tempo julgou-se que os povos sem escrita eram povos sem cultura. Felizmente esse conceito infundado começou a desmoronar. […] Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro do homem”.
(HAMPATÉ BÁ, 1982,181)
E é baseado nesse primeiro arquivo do mundo: o cérebro, que precisamos passar a olhar a África de forma diferente. Não são atrasados porque possuem tradição oral. Podem ter sido atrasados pela invasão europeia que os escravizou e tentou apagar sua ancestralidade e cultura.